30
Mar08
Quando é que a “velha” cai?
Atlântico
Temos memória curta. Para desdramatizar o caso do telemóvel na escola Carolina Michäelis, alguém se lembrou de um filme, Sementes de Violência. Aprendemos assim que já em 1955, na América, o convívio entre professores e estudantes não era sempre idílico – e ainda não havia telemóveis. Mas com tantos séculos de história à disposição, porque não ir mais longe? Até 363, por exemplo, quando S. Cassiano de Ímola foi morto pelos seus alunos, armados para o devido efeito com os estilos de ferro com que escreviam. E embora muita gente não vá acreditar, a verdade é que o ministro da educação do imperador Juliano não era Maria de Lurdes Rodrigues.
Mas se um filme americano não chegou para pôr em perspectiva o último motivo de alarme nacional, muito menos a lenda de um santo. Tivemos assim de assistir às rábulas do costume, com uns a exigir a restauração urgente da palmatória, e outros a explicar que existem “procedimentos” para gerir a “situação”. Na caixa de comentários de um jornal, alguém sugeriu à professora, com toda a seriedade, que convidasse a aluna para ir ao cinema, de forma a criarem “uma nova relação”. Que fazer, entre os viúvos da “autoridade” e os noivos da “psicologia”? Viajar 200 anos para trás, quando é suposto os professores terem sido deuses para os seus alunos; ou 200 anos para a frente, quando professores e alunos conviverem, em pé de igualdade, numa harmonia sábia?
O mundo já não é como uns imaginam que foi, e ainda não é como outros desejam que venha a ser. E agora? Talvez seja a altura de todos fazermos um esforço para compreender isto: que, só por si, o braço de ferro filmado entre uma professora e uma aluna numa escola do Porto não compromete a democracia nem justifica um golpe de estado. Bem sei que não é assim que os meus contemporâneos gostam de encarar estes episódios. O caso do Porto foi aproveitado para tudo: houve quem nos desse lições de história social, e quem finalmente partilhasse connosco as suas pequenas teorias caseiras sobre o conceito de autoridade. E não faltou, claro, o habitual chorrilho de originalidades: uma delas foi a proposta de tratar a indisciplina nas escolas como um simples aspecto da criminalidade. Se um aluno agredir um professor fará todo o sentido chamar a polícia – mas se um aluno atender uma chamada na aula também? Deveria então o Ministério da Educação trespassar a tutela do “sistema de ensino” ao Ministério da Administração Interna? Uma vez perdido o sentido das proporções, é difícil manter o sentido do ridículo.
É significativo que entre tantos cursos abreviados de sociologia da família, ninguém se tivesse interessado por saber mais sobre a aluna, a professora, ou a escola. E ninguém se interessou por esta razão: o nosso gosto actual é promover cada incidente, por mais restrito ou localizado, a um “grande problema”, de modo a podermos exigir a este ou àquele ministro soluções gerais e definitivas para as dificuldades do “mundo actual”. Onde esperamos chegar por este caminho? Fará sentido esperar de um governo, mesmo tão poderoso e determinado como o nosso, que corrija com uma portaria as últimas décadas de evolução social?
E se decidíssemos ver o caso da Carolina Michäelis, não como um embaraço desta ministra ou mais uma lástima da civilização contemporânea, mas apenas como o problema daqueles alunos, daquela professora, daquela escola – e para ser resolvido a esse nível, independentemente de poder ser lamentado por todos? E postas as coisas assim, talvez devêssemos discutir o seguinte: em vez de estatutos e procedimentos confeccionados no ministério, não seria mais útil dar aos estabelecimentos de ensino do estado a margem de manobra e os meios suficientes para lidarem com cada caso de indisciplina tal como parecesse mais adequado aos responsáveis no local, sem referência a autoridades externas?
É agora hábito falar do ensino opondo o estatal ao privado. A respeito de disciplina, a diferença é esta: numa escola privada há alguém que é suposto tratar da questão, e não simplesmente passá-la burocraticamente para a direcção-regional e o ministério. Porque é que as escolas estatais não hão-de dispor da mesma autonomia e responsabilidade? E se cada escola do estado fosse uma instituição com identidade e vontade próprias, em vez da célula anónima e passiva de um “sistema de ensino” definido e comandado a partir de uma rua de Lisboa? E se cada escola tivesse o seu próprio estatuto do aluno? E se cada escola pudesse escolher os seus alunos, e cada aluno escolher a sua escola?
Em vez de encarar as dificuldades do ensino estatal como um “grande problema”, que ninguém sabe resolver, a não ser reescrevendo o livro do Génesis, porque não dividi-lo em muitos pequenos problemas locais, confiando em que seriam resolvidos da maneira possível pelas pessoas concretas a quem esses problemas dizem directamente respeito?
Não, a “velha” não caiu, ao contrário do que chegou a antecipar o denodado documentarista da Carolina Michäelis. Mas outra “velha” já deveria ter caído: a mania de falar do ensino de um ponto de vista impossível.
[Rui Ramos]
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Artigo de 4ª Feira no jornal Público
Editado para o Blogue Atlântico