01
Mai08
OBITUÁRIO POLÍTICO DO SOARISMO
Paulo Pinto Mascarenhas
por M. Fátima Bonifácio
Há mais de trinta anos, Mário Soares cometeu um dos feitos mais difíceis da História: travar a revolução, sem cair na reacção: os anos de 1974 a 1976 contêm o apogeu do seu génio político. É verdade que cometeu outras proezas. Mas há muito se tornara límpido que o “pai da Pátria” não tolerava ser expropriado do PS, uma criação da qual se achava o legítimo proprietário. O congresso “Portugal: Que Futuro?” foi o prenúncio do declínio que culminou no esquerdismo serôdio da sua candidatura presidencial
[Atlântico de Março de 2006]
-
Mário Soares não diminuiu o seu lugar na História com a desastrada aventura presidencial em que se meteu no final do Verão de 2005, aos oitenta anos de idade. Quando muito, a sua biografia terminará com uma nota melancólica ou até soturna, em dissonância com uma vida cheia de luz, grandeza e sucesso, em que os ocasionais revezes devem ser levados à conta do que por vezes inevitavelmente perde quem muito arrisca e luta. Era, e continua a ser, um “pai da Pátria”. Entre os seus muitos êxitos, avulta aquele que recolhe a gratidão e o louvor unânime dos Portugueses. Foi entre 1974 e 1976. Quando os comunistas se preparavam para confiscar a revolução de Abril e submeter Portugal a uma nova ditadura, e quando Cunhal planeava fazer de Soares um Kerensky português, Soares furtou-se a esse destino e liderou uma contra-revolução democrática triunfal: nem conduziu a uma “restauração” revanchista, nem ao aniquilamento dos adversários à sua esquerda. Conduziu, muito simples e precisamente, à Democracia. Soares cometeu um dos feitos mais difíceis da História: travar a revolução, sem cair na reacção.
Há mais de trinta anos, Mário Soares cometeu um dos feitos mais difíceis da História: travar a revolução, sem cair na reacção: os anos de 1974 a 1976 contêm o apogeu do seu génio político. É verdade que cometeu outras proezas. Mas há muito se tornara límpido que o “pai da Pátria” não tolerava ser expropriado do PS, uma criação da qual se achava o legítimo proprietário. O congresso “Portugal: Que Futuro?” foi o prenúncio do declínio que culminou no esquerdismo serôdio da sua candidatura presidencial
[Atlântico de Março de 2006]
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Mário Soares não diminuiu o seu lugar na História com a desastrada aventura presidencial em que se meteu no final do Verão de 2005, aos oitenta anos de idade. Quando muito, a sua biografia terminará com uma nota melancólica ou até soturna, em dissonância com uma vida cheia de luz, grandeza e sucesso, em que os ocasionais revezes devem ser levados à conta do que por vezes inevitavelmente perde quem muito arrisca e luta. Era, e continua a ser, um “pai da Pátria”. Entre os seus muitos êxitos, avulta aquele que recolhe a gratidão e o louvor unânime dos Portugueses. Foi entre 1974 e 1976. Quando os comunistas se preparavam para confiscar a revolução de Abril e submeter Portugal a uma nova ditadura, e quando Cunhal planeava fazer de Soares um Kerensky português, Soares furtou-se a esse destino e liderou uma contra-revolução democrática triunfal: nem conduziu a uma “restauração” revanchista, nem ao aniquilamento dos adversários à sua esquerda. Conduziu, muito simples e precisamente, à Democracia. Soares cometeu um dos feitos mais difíceis da História: travar a revolução, sem cair na reacção.
Esses dois anos de 1974 a 1976 contêm o apogeu do seu génio político. É verdade que cometeu outras proezas. A extraordinária eleição para Presidente em 1986, em que conseguiu o milagre de passar à segunda volta e em que nesta o “povo de esquerda” lhe deu a (tangencial) maioria dos votos. E a esmagadora eleição para um segundo mandato em 1991, extraordinária por outras razões: neste caso, congregou votos de toda a gente, da Direita aos comunistas. Também não será exagerado taxar de proeza a reconquista do Partido Socialista que empreendeu em 1982, contra os seus rivais Salgado Zenha, Jorge Sampaio e António Guterres. Mas estas proezas não tiveram nem têm o alcance histórico da sua luta titânica e triunfante em defesa da Democracia. Esta é a sua maior coroa de glória, esta é a maior dívida que Portugal para com ele contraíu. Portugal retribuiu concedendo-lhe dez anos de Presidência e reconhecendo-lhe um estatuto àparte entre os políticos que o dirigiram e governaram.
Durante o segundo mandato presidencial, de 1991 a 1996, Soares, legitimado por 70% dos votos, dedicou-se sobretudo a fazer oposição ao governo de Cavaco Silva, e, na parte final, também a minar o poder de António Guterres dentro do PS. Não gostava de Guterres, um católico de esquerda que não condizia bem com a tradição laica e republicana (i.e., jacobina) do Partido Socialista, e que Soares, laico e republicano, não aceitava. Por esta altura já há muito se tornara límpido que o “pai da Pátria” tolerava mal – ou não tolerava – ser expropriado do Partido Socialista, uma criação sua da qual ele se achava o legítimo proprietário e a quem não queria ou não podia reconhecer autonomia. Por outras palavras, já era claro para toda a gente que Soares não suportava que ninguém lhe fizesse sombra, que não admitia parceiros em quem só via rivais, e que possuía uma ambição de poder pessoal susceptível de o inclinar para actuações dúbias. O congresso “Portugal: Que Futuro?”, acintosamente dirigido contra António Guterres (e, acessoriamente, também contra Cavaco), foi no entanto um fracasso. Toda a gente percebeu e reprovou a manobra, e Guterres contra-atacou com os “Estados Gerais”, que foram um indiscutível sucesso. Mas a manobra existiu e, o que é mais importante, não resultou. Retrospectivamente, é-se tentado a ver aqui o prenúncio do declínio de Soares, do qual ele nos anos seguintes não se apercebeu apesar de esse declínio, como adiante direi, se ter imparavelmente agravado.
O caso com Cavaco Silva foi mais sério e de consequências mais duradoiras, e verdadeiramente só teve o seu desfecho na noite de 22 de Janeiro de 2006. A primeira maioria absoluta de Cavaco foi um sucesso que o povo retribuiu com uma segunda. Foi nesse tempo que a modernização do país foi encetada, culminando numa transformação que o tornou irreconhecível ao cabo de dez anos. Soares percebeu que os seus anos de Presidência ficariam para a História como a década de Cavaco, não dele.
Dado o seu temperamento, que muita gente já começava a não apreciar, não se resignou a que lhe roubassem as luzes da ribalta. Inventou as Presidências Abertas, uma iniciativa rodeada de grande alarido que tinha o mérito de atrair a atenção pública sobre ele, exibindo o seu desvelo pelos problemas do país e o seu empenho em os resolver, e a vantagem de lhe permitir criticar o governo sem que este pudesse reagir. A meio da segunda maioria de Cavaco Silva, como a economia desse sinais de gripar, os portugueses começaram a cansar-se do Professor, que alegadamente se furtava ao diálogo, ignorava os murmmúrios do país e não ligava à oposição. Soares denunciou então a “ditadura da maioria”, passando a encabeçar o coro de quantos acusavam o primeiro-ministro de autoritarismo e prepotência. Como o “ditador” não se emendasse, Soares inventou o “direito à indignação”, uma maneira de fomentar o descontentamento e de encorajar o protesto. Os Portugueses, é claro,
indignaram-se o mais possível, e Soares passou a receber e ouvir toda a casta de queixosos. “Soares foi dos primeiros […] a abrir brechas profundas no edifício cavaquista.” (A. Barreto, Pública, 31.8.1997). Belém transformou-se na sede da oposição ao governo. Confrontado com a fronda presidencial, Cavaco Silva pronunciou na altura uma frase que ficou célebre: “É preciso ajudar o Dr. Mário Soares a terminar o seu mandato com dignidade.” Com efeito, “Soares não saiu da Presidência em triunfo” (P. Valente, Público, 19.1.2006).
Mas saiu com uma aura de invencibilidade que se manteve intacta mesmo quando se começaram a acumular os sinais de que estava irremediavelmente enfraquecido. O mesmo se pode dizer do seu prestígio. Soares continuou a existir num pedestal bem acima do comum dos mortais, admirado, venerado, adulado e obedecido por um “círculo de amigos” que foi, ao longo da sua vida, desde os tempos da Ditadura, a base privada, e opaca, do seu poder. Sempre foi esse círculo “a sua principal organização política” (A. Barreto, idem). Com o passar dos anos e das décadas, esse “círculo de amigos” foi envolto por uma “Corte” onde muita gente gostava ou gostaria de figurar, a que muita gente se ufanava de pertencer. O glamour que Soares irradiava resplandecia sobre os membros do seu séquito. Soares ganhou fama de manter relações clientelares; de exigir de quantos o rodeavam uma fidelidade pessoal indefectível; de viver cercado de incondicionais. Muito se começou a falar na “Dinastia Soares”. E o “monarca”, de facto, sempre deixou perceber que não estava disposto a sair voluntariamente de cena, uma renúncia que não estava no seu temperamento, que bem cedo se revelou. Mesmo nos seus mandatos de primeiro-ministro, “a vontade de durar sobrepôs-se a qualquer outra”, tornando-o cego aos “sinais do tempo” (A. Barreto, idem). O seu tão afamado faro político já então acusava falhas.
Os últimos dois anos do segundo mandato presidencial deram-lhe algumas alegrias. Cavaco, o único rival susceptível de o ofuscar no presente ou nas páginas da História, sofreu entre 1994 e 1996 quatro tremendas derrotas: nas autárquicas, nas legislativas, nas europeias e nas presidenciais. “Soares deu-se por satisfeito. Foi o último a rir.” (A. Barreto, idem). Os factos subsequentes mostraram que rira antes do tempo. Cavaco nunca teve um “círculo de amigos” e faltava-lhe o glamour para alimentar uma “Corte” de admiradores e fiéis. Soares julgou-o morto e por isso o convidou para a inauguração do museu de Cortes, exibindo o seu troféu diante das câmaras da Televisão. Foi prematuro. Os dois homens eram e são o oposto um do outro. Em 1996, Cavaco retirou-se e, com discrição, minúcia e eficácia, restaurou o seu prestígio abalado pela forma atabalhoada como saira do PSD e pela derrota face a Sampaio. Não tardou que o país visse nele uma reserva da nação. E ainda o segundo mandato de Sampaio não chegara a meio e já se falava em Cavaco para a Presidência da República, que Soares julgava moralmente pertencer-lhe. Emergira de novo o rival. Reacendia-se a velha luta.
Depois que saiu definitivamente de Belém, Soares, sempre com os seus “amigos”, sempre com a sua “Corte”, manteve-se um foco de atenção pública e política permanente. Mas nenhum “animal político” se queda satisfeito sem poder. E Soares não o tinha nem no Partido, empolgado pelo guterrismo, nem, consequentemente, no Estado, de onde as suas clientelas há muito tinham sido desalojadas. A Fundação Mário Soares, embora fosse para ele mais um factor de projecção, não lhe bastava. Escrever as Memórias parecia-lhe o equivalente a redigir o seu próprio epitáfio; a leitura podia ser uma boa maneira de passar os fins de tarde, mas não preenche a existência e menos satisfaz a vontade de poder. Não havia em 1995, e continuou a não haver depois, “ninguém que ele considerasse digno de lhe suceder no PS e no Estado” (P. Valente, idem). A própria “Dinastia” parecia sem um sucessor à altura. E ele precisava de acção.
Foi então, a partir de 1999, que se sucederam uma série de sinais que se deveriam ter imposto à sua lendária intuição política mas a que Soares, curiosamente, não deu qualquer atenção. Soares, alegadamente o único português com verdadeiro prestígio na Europa e até no mundo, candidatou-se à Presidência do Parlamento Europeu, esperando, com inexplicável optimismo, que o PPE votasse num socialista por especial deferência para com a sua pessoa. Mas perdeu, e contra alguém que ele apelidara, com desprezo, uma “dona de casa francesa”. Parece que já era pecha antiga essa de subestimar os adversários, perenemente convencido da sua superioridade política (A. Barreto, idem). Seguiu-se, em 2001, a derrota de João Soares nas eleições para a Câmara Municipal de Lisboa. Derrota injusta, a meu ver, mas derrota à mesma. E deu-se depois, em 2004, um facto decisivo: João Soares perdeu as eleições para o Secretariado-Geral do Partido Socialista, colocando um ponto final nas aspirações do soarismo a dominar o PS. Não haveria sucessor. Finalmente, em 9 de Outubro de 2005, João Soares perdeu as eleições para a Câmara de Sintra contra um adversário menor, apesar de o Pai ter nessa manhã, à boca da urna, apelado publicamente para o voto no filho. O apelo não surtiu qualquer efeito. No dia das últimas eleições autárquicas era impossível, para quem tivesse estado atento a todos estes sinais, não concluir que a “Dinastia Soares” tinha acabado ali. Apenas o próprio, os “amigos” e a “Corte” não se aperceberam do que entrava pelos olhos dentro. Estranha cegueira.
Que nos últimos anos se foi também revelando na inflexão esquerdizante de Mário Soares. Um dos sintomas mais palpáveis dessa inflexão revelou-se por ocasião das eleições de 2001 para a Câmara Municipal de Lisboa, em que João Soares concorria a um segundo mandato (aliás, a meu ver, merecido). A campanha, centrada num apelo ao anti-fascismo quando ninguém enxergava qualquer ameaça fascista, foi evidentemente um desastre. A estratégia partia do princípio de que haveria, também em Lisboa, um “povo de esquerda” susceptível de ser galvanizado pelas arengas de Vasco Lourenço, que João Soares foi desenterrar para mandatário. Nenhum jovem com menos de trinta e cinco anos já se lembra do herói de Abril nem sabe o que foi o fascismo. E o “povo de esquerda”, transformado por dez anos de cavaquismo, adoptou o consumo como a sua principal paixão na vida e dá a liberdade por adquirida; o “povo de esquerda” que resta está firmemente ancorado ao PCP.
Incompreensivelmente, João Soares repetiu em essência a mesma receita nas eleições para o Secretariado-Geral do PS, prometendo levar o Partido para a Esquerda e bipolarizar a política portuguesa. Não convenceu os seus camaradas, que votaram maioritariamente em Sócrates e, em segundo lugar, em Alegre. Patentemente, João Soares ainda nessa altura não compreendera o que mudara no país e no Partido.
E o Pai, Mário Soares, também não. Nas suas noites na SIC, no programa Sociedade Aberta, passou a fazer-se eco da deriva esquerdista do Bloco, exprimindo um radicalismo que no passado ninguém lhe conhecera. Tornou-se também uma espécie de porta-voz da altermundialização apregoada nos fóruns de Porto Alegre que, em Portugal e lá fora, se converteu no abrigo de todos os órfãos ideológicos gerados pela queda do muro de Berlim. Parece não ter compreendido que a globalização não é mais do que o capitalismo do século XXI, e que os apelos a combatê-la são tão inúteis como foram os esforços do ludismo para combater a industrialização do século XIX. O seu anti-americanismo militante foi outra das credenciais com que se apresentou a seduzir a esquerda, da qual pretendia tornar-se na referência principal. Não queria ser diluído na maré centrista em que o país mergulhara e que a governação de Sócrates sancionava. Precisava de se afirmar num espaço próprio que talvez pudesse conquistar se conseguisse, no pressuposto de que continuava a ser amado pelo país, ressuscitar o “povo de esquerda” e seduzir o radicalismo.
O pressuposto, como há muito era visível para quem atendesse aos sinais que acima indiquei, era falso. Soares, que via o país através dos olhos dos “amigos” e da “Corte”, nunca reparou na existência de um anti-soarismo difuso mas arreigado. O país recompensara-o com uma década de Presidência e até lhe concedera um estatuto vitalício de Presidente honorário.
Mas há muito que enjeitara a sua tutela. Soares não sentiu nem percebeu nada disto e sobreestimou desmesuradamente a sua influência real. Quando a candidatura de Cavaco Silva se perfilou como inevitável, achou que era ele o único capaz de impedir que o professor chegasse à Presidência com a mesma facilidade com que se desce pela Av. da Liberdade. Desprezou e subestimou Alegre, a quem nunca terá perdoado ter concorrido contra o filho – e portanto contra ele próprio - nas eleições para o Secretariado-Geral do PS. Alegre não era apenas um personagem menor, sem estatura para defrontar Cavaco: era também ou sobretudo um adversário pessoal. Confiado na sua lendária capacidade para desencadear uma vaga de fundo a seu favor – um cálculo que os “amigos” e a “Corte” por certo lhe confirmaram - declarou-se pela terceira vez candidato à Presidência da República, para impedir que esta lhe fosse arrebatada pelo seu velho rival e apropriada pela “Direita”. Foi, como se viu, um “erro de gnose”.
O anúncio da candidatura de Mário Soares deixou o país indiferente. Não gerou nenhuma vaga de fundo, nenhuma onda de entusiasmo, nenhuma adesão em massa. Pelo contrário, concitou geral reprovação. O seu esquerdismo serôdio não lhe valeu a conciliação do PCP, que nunca esqueceu nem esquecerá que foi ele quem principalmente derrotou o PREC. O Bloco não conta. E uma grande parte do Partido Socialista rebelou-se contra um homem do passado que lhe foi imposto pelo Secretário-Geral por razões que muito provavelmente só a História um dia desvendará. Mas hipóteses há desde já muitas. Uma delas é que a escolha de Soares tenha sido feita precisamente com o objectivo de o remover de vez. Quanto ao país, rejeitou não apenas um velho mas também um homem cuja ambição achava injustificada e lhe parecia incompreensível. Cavaco Silva, para já, foi o último a rir.
Durante o segundo mandato presidencial, de 1991 a 1996, Soares, legitimado por 70% dos votos, dedicou-se sobretudo a fazer oposição ao governo de Cavaco Silva, e, na parte final, também a minar o poder de António Guterres dentro do PS. Não gostava de Guterres, um católico de esquerda que não condizia bem com a tradição laica e republicana (i.e., jacobina) do Partido Socialista, e que Soares, laico e republicano, não aceitava. Por esta altura já há muito se tornara límpido que o “pai da Pátria” tolerava mal – ou não tolerava – ser expropriado do Partido Socialista, uma criação sua da qual ele se achava o legítimo proprietário e a quem não queria ou não podia reconhecer autonomia. Por outras palavras, já era claro para toda a gente que Soares não suportava que ninguém lhe fizesse sombra, que não admitia parceiros em quem só via rivais, e que possuía uma ambição de poder pessoal susceptível de o inclinar para actuações dúbias. O congresso “Portugal: Que Futuro?”, acintosamente dirigido contra António Guterres (e, acessoriamente, também contra Cavaco), foi no entanto um fracasso. Toda a gente percebeu e reprovou a manobra, e Guterres contra-atacou com os “Estados Gerais”, que foram um indiscutível sucesso. Mas a manobra existiu e, o que é mais importante, não resultou. Retrospectivamente, é-se tentado a ver aqui o prenúncio do declínio de Soares, do qual ele nos anos seguintes não se apercebeu apesar de esse declínio, como adiante direi, se ter imparavelmente agravado.
O caso com Cavaco Silva foi mais sério e de consequências mais duradoiras, e verdadeiramente só teve o seu desfecho na noite de 22 de Janeiro de 2006. A primeira maioria absoluta de Cavaco foi um sucesso que o povo retribuiu com uma segunda. Foi nesse tempo que a modernização do país foi encetada, culminando numa transformação que o tornou irreconhecível ao cabo de dez anos. Soares percebeu que os seus anos de Presidência ficariam para a História como a década de Cavaco, não dele.
Dado o seu temperamento, que muita gente já começava a não apreciar, não se resignou a que lhe roubassem as luzes da ribalta. Inventou as Presidências Abertas, uma iniciativa rodeada de grande alarido que tinha o mérito de atrair a atenção pública sobre ele, exibindo o seu desvelo pelos problemas do país e o seu empenho em os resolver, e a vantagem de lhe permitir criticar o governo sem que este pudesse reagir. A meio da segunda maioria de Cavaco Silva, como a economia desse sinais de gripar, os portugueses começaram a cansar-se do Professor, que alegadamente se furtava ao diálogo, ignorava os murmmúrios do país e não ligava à oposição. Soares denunciou então a “ditadura da maioria”, passando a encabeçar o coro de quantos acusavam o primeiro-ministro de autoritarismo e prepotência. Como o “ditador” não se emendasse, Soares inventou o “direito à indignação”, uma maneira de fomentar o descontentamento e de encorajar o protesto. Os Portugueses, é claro,
indignaram-se o mais possível, e Soares passou a receber e ouvir toda a casta de queixosos. “Soares foi dos primeiros […] a abrir brechas profundas no edifício cavaquista.” (A. Barreto, Pública, 31.8.1997). Belém transformou-se na sede da oposição ao governo. Confrontado com a fronda presidencial, Cavaco Silva pronunciou na altura uma frase que ficou célebre: “É preciso ajudar o Dr. Mário Soares a terminar o seu mandato com dignidade.” Com efeito, “Soares não saiu da Presidência em triunfo” (P. Valente, Público, 19.1.2006).
Mas saiu com uma aura de invencibilidade que se manteve intacta mesmo quando se começaram a acumular os sinais de que estava irremediavelmente enfraquecido. O mesmo se pode dizer do seu prestígio. Soares continuou a existir num pedestal bem acima do comum dos mortais, admirado, venerado, adulado e obedecido por um “círculo de amigos” que foi, ao longo da sua vida, desde os tempos da Ditadura, a base privada, e opaca, do seu poder. Sempre foi esse círculo “a sua principal organização política” (A. Barreto, idem). Com o passar dos anos e das décadas, esse “círculo de amigos” foi envolto por uma “Corte” onde muita gente gostava ou gostaria de figurar, a que muita gente se ufanava de pertencer. O glamour que Soares irradiava resplandecia sobre os membros do seu séquito. Soares ganhou fama de manter relações clientelares; de exigir de quantos o rodeavam uma fidelidade pessoal indefectível; de viver cercado de incondicionais. Muito se começou a falar na “Dinastia Soares”. E o “monarca”, de facto, sempre deixou perceber que não estava disposto a sair voluntariamente de cena, uma renúncia que não estava no seu temperamento, que bem cedo se revelou. Mesmo nos seus mandatos de primeiro-ministro, “a vontade de durar sobrepôs-se a qualquer outra”, tornando-o cego aos “sinais do tempo” (A. Barreto, idem). O seu tão afamado faro político já então acusava falhas.
Os últimos dois anos do segundo mandato presidencial deram-lhe algumas alegrias. Cavaco, o único rival susceptível de o ofuscar no presente ou nas páginas da História, sofreu entre 1994 e 1996 quatro tremendas derrotas: nas autárquicas, nas legislativas, nas europeias e nas presidenciais. “Soares deu-se por satisfeito. Foi o último a rir.” (A. Barreto, idem). Os factos subsequentes mostraram que rira antes do tempo. Cavaco nunca teve um “círculo de amigos” e faltava-lhe o glamour para alimentar uma “Corte” de admiradores e fiéis. Soares julgou-o morto e por isso o convidou para a inauguração do museu de Cortes, exibindo o seu troféu diante das câmaras da Televisão. Foi prematuro. Os dois homens eram e são o oposto um do outro. Em 1996, Cavaco retirou-se e, com discrição, minúcia e eficácia, restaurou o seu prestígio abalado pela forma atabalhoada como saira do PSD e pela derrota face a Sampaio. Não tardou que o país visse nele uma reserva da nação. E ainda o segundo mandato de Sampaio não chegara a meio e já se falava em Cavaco para a Presidência da República, que Soares julgava moralmente pertencer-lhe. Emergira de novo o rival. Reacendia-se a velha luta.
Depois que saiu definitivamente de Belém, Soares, sempre com os seus “amigos”, sempre com a sua “Corte”, manteve-se um foco de atenção pública e política permanente. Mas nenhum “animal político” se queda satisfeito sem poder. E Soares não o tinha nem no Partido, empolgado pelo guterrismo, nem, consequentemente, no Estado, de onde as suas clientelas há muito tinham sido desalojadas. A Fundação Mário Soares, embora fosse para ele mais um factor de projecção, não lhe bastava. Escrever as Memórias parecia-lhe o equivalente a redigir o seu próprio epitáfio; a leitura podia ser uma boa maneira de passar os fins de tarde, mas não preenche a existência e menos satisfaz a vontade de poder. Não havia em 1995, e continuou a não haver depois, “ninguém que ele considerasse digno de lhe suceder no PS e no Estado” (P. Valente, idem). A própria “Dinastia” parecia sem um sucessor à altura. E ele precisava de acção.
Foi então, a partir de 1999, que se sucederam uma série de sinais que se deveriam ter imposto à sua lendária intuição política mas a que Soares, curiosamente, não deu qualquer atenção. Soares, alegadamente o único português com verdadeiro prestígio na Europa e até no mundo, candidatou-se à Presidência do Parlamento Europeu, esperando, com inexplicável optimismo, que o PPE votasse num socialista por especial deferência para com a sua pessoa. Mas perdeu, e contra alguém que ele apelidara, com desprezo, uma “dona de casa francesa”. Parece que já era pecha antiga essa de subestimar os adversários, perenemente convencido da sua superioridade política (A. Barreto, idem). Seguiu-se, em 2001, a derrota de João Soares nas eleições para a Câmara Municipal de Lisboa. Derrota injusta, a meu ver, mas derrota à mesma. E deu-se depois, em 2004, um facto decisivo: João Soares perdeu as eleições para o Secretariado-Geral do Partido Socialista, colocando um ponto final nas aspirações do soarismo a dominar o PS. Não haveria sucessor. Finalmente, em 9 de Outubro de 2005, João Soares perdeu as eleições para a Câmara de Sintra contra um adversário menor, apesar de o Pai ter nessa manhã, à boca da urna, apelado publicamente para o voto no filho. O apelo não surtiu qualquer efeito. No dia das últimas eleições autárquicas era impossível, para quem tivesse estado atento a todos estes sinais, não concluir que a “Dinastia Soares” tinha acabado ali. Apenas o próprio, os “amigos” e a “Corte” não se aperceberam do que entrava pelos olhos dentro. Estranha cegueira.
Que nos últimos anos se foi também revelando na inflexão esquerdizante de Mário Soares. Um dos sintomas mais palpáveis dessa inflexão revelou-se por ocasião das eleições de 2001 para a Câmara Municipal de Lisboa, em que João Soares concorria a um segundo mandato (aliás, a meu ver, merecido). A campanha, centrada num apelo ao anti-fascismo quando ninguém enxergava qualquer ameaça fascista, foi evidentemente um desastre. A estratégia partia do princípio de que haveria, também em Lisboa, um “povo de esquerda” susceptível de ser galvanizado pelas arengas de Vasco Lourenço, que João Soares foi desenterrar para mandatário. Nenhum jovem com menos de trinta e cinco anos já se lembra do herói de Abril nem sabe o que foi o fascismo. E o “povo de esquerda”, transformado por dez anos de cavaquismo, adoptou o consumo como a sua principal paixão na vida e dá a liberdade por adquirida; o “povo de esquerda” que resta está firmemente ancorado ao PCP.
Incompreensivelmente, João Soares repetiu em essência a mesma receita nas eleições para o Secretariado-Geral do PS, prometendo levar o Partido para a Esquerda e bipolarizar a política portuguesa. Não convenceu os seus camaradas, que votaram maioritariamente em Sócrates e, em segundo lugar, em Alegre. Patentemente, João Soares ainda nessa altura não compreendera o que mudara no país e no Partido.
E o Pai, Mário Soares, também não. Nas suas noites na SIC, no programa Sociedade Aberta, passou a fazer-se eco da deriva esquerdista do Bloco, exprimindo um radicalismo que no passado ninguém lhe conhecera. Tornou-se também uma espécie de porta-voz da altermundialização apregoada nos fóruns de Porto Alegre que, em Portugal e lá fora, se converteu no abrigo de todos os órfãos ideológicos gerados pela queda do muro de Berlim. Parece não ter compreendido que a globalização não é mais do que o capitalismo do século XXI, e que os apelos a combatê-la são tão inúteis como foram os esforços do ludismo para combater a industrialização do século XIX. O seu anti-americanismo militante foi outra das credenciais com que se apresentou a seduzir a esquerda, da qual pretendia tornar-se na referência principal. Não queria ser diluído na maré centrista em que o país mergulhara e que a governação de Sócrates sancionava. Precisava de se afirmar num espaço próprio que talvez pudesse conquistar se conseguisse, no pressuposto de que continuava a ser amado pelo país, ressuscitar o “povo de esquerda” e seduzir o radicalismo.
O pressuposto, como há muito era visível para quem atendesse aos sinais que acima indiquei, era falso. Soares, que via o país através dos olhos dos “amigos” e da “Corte”, nunca reparou na existência de um anti-soarismo difuso mas arreigado. O país recompensara-o com uma década de Presidência e até lhe concedera um estatuto vitalício de Presidente honorário.
Mas há muito que enjeitara a sua tutela. Soares não sentiu nem percebeu nada disto e sobreestimou desmesuradamente a sua influência real. Quando a candidatura de Cavaco Silva se perfilou como inevitável, achou que era ele o único capaz de impedir que o professor chegasse à Presidência com a mesma facilidade com que se desce pela Av. da Liberdade. Desprezou e subestimou Alegre, a quem nunca terá perdoado ter concorrido contra o filho – e portanto contra ele próprio - nas eleições para o Secretariado-Geral do PS. Alegre não era apenas um personagem menor, sem estatura para defrontar Cavaco: era também ou sobretudo um adversário pessoal. Confiado na sua lendária capacidade para desencadear uma vaga de fundo a seu favor – um cálculo que os “amigos” e a “Corte” por certo lhe confirmaram - declarou-se pela terceira vez candidato à Presidência da República, para impedir que esta lhe fosse arrebatada pelo seu velho rival e apropriada pela “Direita”. Foi, como se viu, um “erro de gnose”.
O anúncio da candidatura de Mário Soares deixou o país indiferente. Não gerou nenhuma vaga de fundo, nenhuma onda de entusiasmo, nenhuma adesão em massa. Pelo contrário, concitou geral reprovação. O seu esquerdismo serôdio não lhe valeu a conciliação do PCP, que nunca esqueceu nem esquecerá que foi ele quem principalmente derrotou o PREC. O Bloco não conta. E uma grande parte do Partido Socialista rebelou-se contra um homem do passado que lhe foi imposto pelo Secretário-Geral por razões que muito provavelmente só a História um dia desvendará. Mas hipóteses há desde já muitas. Uma delas é que a escolha de Soares tenha sido feita precisamente com o objectivo de o remover de vez. Quanto ao país, rejeitou não apenas um velho mas também um homem cuja ambição achava injustificada e lhe parecia incompreensível. Cavaco Silva, para já, foi o último a rir.