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31
Mai08

Livros Atlânticos (2)

Atlântico

O dever de memória

 

 

 


Antony Beever, e Luba Vinogradova (org.), Um Escritor na Guerra. Vasily Grossman com o Exército Vermelho 1941-1945, Lisboa, Edições 70, 2007, 456 PP.

por Alexandre Homem Cristo

Vasily Grossman (1905-1954) foi repórter de guerra para o jornal do Exército Vermelho durante a II Guerra Mundial, acompanhando as tropas soviéticas na frente de combate contra os alemães. A partir dos artigos jornalísticos e da correspondência que Grossman trocou nesse período, Beever e Vinogradova fizeram uma compilação (bem) comentada, que respeita integralmente as intenções de Grossman em retratar a «verdade implacável da guerra» (p. 156); uma realidade bem presente nas batalhas de Moscovo, Kursk e Estalinegrado (1942-43), esta última onde se estima terem perdido a vida cerca de 1.5 milhões de pessoas.


Não há guerra sem vítimas. Não há guerra sem sacrifícios pessoais e colectivos. E não há guerra sem homens bravos e corajosos. Esta é a primeira mensagem de Grossman. Ao relatar os esforços das tropas perante o inimigo germânico, melhor treinado e com maior poder de fogo, Grossman cede, por vezes, à tentação de mistificar o soldado soviético, numa clara mistura de jornalismo com propaganda política, o que não o impede igualmente de ser duro com as derrotas e com o caos que comandava o exército do seu país. A sua principal intenção é pintar o campo de batalha, e o quadro resultante tem sempre a morte no centro: «Soldados completamente incinerados dentro de casa. Os seus corpos carbonizados foram encontrados. Nenhum deles fugiu. Mantiveram-se firmes enquanto eram queimados» (p. 240).

 

A segunda, e ainda mais importante, mensagem de Grossman é que o inimigo (i.e. o nazismo) não o é apenas para os soviéticos, que conhecem a ameaça no seu território. O nazismo é um inimigo da Humanidade. Os artigos de Grossman que testemunham a libertação dos campos de morte de Berdichev e Treblinka são tão brutais quanto exaustivos e constituem o ponto mais alto da obra, tendo sido citados durante os julgamentos de Nuremberga: «Não resta ninguém em Kazary para se queixar, ninguém para contar, ninguém para chorar. O silêncio e a calma pairam acima dos cadáveres enterrados sob as lareiras destruídas, agora invadidas pela erva» (p. 314).

 

A perversidade da desumanização do inimigo, neste caso o povo judeu, foi a herança do nazismo. E é algo que nunca será recordado em demasia: «Hitler pôs [as] qualidades do carácter alemão ao serviço de crimes cometidos contra a Humanidade. Nos campos de trabalho da Polónia, as SS agiram como se se tratasse de cultivar couve-flor ou batatas» (p. 350). Grossman sente-o em primeira mão, e apercebe-se da responsabilidade que tem em partilhá-lo com o mundo, soando um sinal de alarme que faz lembrar Primo Levi em Se Isto é um Homem: «é infinitamente duro sequer ler isto. O leitor tem de crer em mim, é igualmente duro pô-lo por escrito. [Mas] é dever do escritor contar esta terrível verdade, e é dever cívico do leitor aprendê-la» (p. 371).

 

Uma leitura fundamental, um dever de recordar a que a responsabilidade obriga.

 

 

[Publicado na Revista Atlântico]

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