Livros Atlânticos (4)
Desempregado Moral
John Le Carré, O Canto da Missão, Lisboa, Dom Quixote, 2007, 391 pp.
por Bruno Vieira Amaral
No início dos anos 90, John Le Carré, ex-espião ao serviço de sua majestade, era um desempregado moral da Guerra Fria. Os livros de espionagem que o celebrizaram não eram, apesar disso, retratos a preto e branco com os bons de um lado e os maus de outro. No cenário da Guerra Fria, num mundo bipolar, foi isso que resgatou Le Carré do submundo do thriller de espionagem. Parece que o negócio do homem era, afinal de contas, a literatura.
Então porquê chamá-lo, hoje, desempregado moral? Le Carré estava habituado a deslizar suavemente na superfície gelada de um lago conhecido. Após o degelo viu-se subitamente em pleno alto mar e sem referências. Navegar entre Cila e Caríbdis requer perícia, mas ficar à deriva é outro desporto. Afinal, é num mundo de dúvidas que mais precisamos de coordenadas morais. Le Carré foi encontrá-las em África e na América Latina – os muros das lamentações das pesadas consciências ocidentais.
A par da literatura, Le Carré investiu no negócio da culpa ocidental. Os seus livros mais recentes podem considerar-se um híbrido do velho romance de espionagem com o romance pós-colonial. Guerra Fria servida a quente, no calor de uma África destruída por guerras e promessas. O terreno ideal para o pessimista Le Carré dividir o mundo entre inocentes e culpados, preto(s) e branco(s) num mundo a cores. É o que acontece em O Canto da Missão.
Bruno Salvador, um mulato filho de pai irlandês e de mãe congolesa, trabalha como intérprete para os serviços secretos britânicos. Salvo, como é conhecido, sente-se uma zebra (preto e branco, não é nem uma coisa nem outra). Ele é a ponte entre as duas margens, sem pertencer a nenhuma. A coincidência de um casamento em ruínas com uma jovem branca de boas famílias, a súbita paixão por uma enfermeira africana e um trabalho em que fica a saber mais do que devia empurram-no para a margem africana, para as riscas negras da “zebra”. Intérprete numa conferência secreta promovida por um anónimo Sindicato, Salvo fica a par de um projecto filantrópico para desenvolver a República Democrática do Congo, que não passa de um golpe de Estado para favorecer os interesses económicos do Sindicato. É preciso dizer que o Sindicato é um covil de ocidentais corruptos e sem valores? É preciso dizer que os africanos são descritos à luz de uma generosa e muito ocidental condescendência?
Salvo é um inocente que descobre que os brancos à sua volta são todos culpados. Ele e Hannah, a enfermeira congolesa que representa a África que Salvo deixou para trás aos dez anos, são duas almas que o Ocidente não corrompeu, e África é o reduto físico dessa inocência. E para Le Carré é outra coisa: a derradeira oportunidade de emprego moral.
[Publicado na Revista Atlântico]