Ainda, ainda o acordo ortográfico
O blogue da Atlântico passou por uma série de posts sobre o acordo ortográfico e eu, colaborador brasileiro e bissexto, acabei por não dizer à época o que tanto queria. Eis, pois, uma versão resumida.
A primeira razão pela qual sou contra o acordo é meu amor pela língua assim como a aprendi. Quem ama alguma coisa deseja que ela continue a mesma. Talvez as mulheres queiram que os homens que amam mudem, mas os homens querem que as mulheres fiquem sempre iguais, e eu sou homem. (Não é o momento de comentar o fato de que normalmente as mulheres é que mudam e os homens que continuam iguais.)
A segunda razão, que me parece bastante forte, é que é preciso levar em conta não só a uniformidade no espaço, mas também no tempo. A estabilidade ortográfica diminui o estranhamento na leitura das obras antigas. Um fac-símile dos Lusíadas já quase pede alguma decodificação. Se as mudanças continuarem a ocorrer com esta velocidade, em mais 400 anos somente os filólogos poderão entender os originais, e nós mesmos pareceremos estranhíssimos.
A terceira razão é que privilegiar um critério fonético é arbitrário. A ortografia da virada do século XIX para o XX ainda preservava diversos sinais das raízes das palavras, e isto nos lembrava das raízes da língua. Não existimos soltos no espaço. Não somos nossa própria origem. Pior ainda, a pronúncia muda com o tempo. Se o critério fonético é que vale, logo será preciso outra reforma. Minha piada favorita em relação ao português europeu (ou talvez lisboeta) é que qualquer carioca pode falá-lo com facilidade: basta não pronunciar as vogais. E antes que os amigos europeus fiquem ofendidos, recordo uma palestra de Maria Helena Mira Mateus aqui no Rio de Janeiro em que ela mesma declarava-se preocupada com a ausência de vogais em uma palavra como “dshprshtju” (“desprestígio”).
A quarta razão é que não consigo crer por um único segundo que a reforma seja feita para o bem da população lusófona. Sou uma criatura das faculdades de letras e sei que professores de português, ao menos cá no Brasil, não fazem outra coisa senão criticar (muitas vezes com razão!) a gramática e tudo mais que está associado à língua. Não se passa uma aula sem que digam como as coisas deveriam ser. Os professores não entendem que o maior problema da “norma gramatical brasileira” é ela ser sancionada pelo governo. Assim como Alexander Herzen falou que “o povo não quer liberdade, quer uma tirania que esteja do seu lado”, os professores não querem livrar-se de jugos ministeriais, mas usar os ministérios para imortalizar-se como reformadores da língua.
A quinta razão, amplamente discutida, é que a uniformização ortográfica pouco contribui para aumentar a inteligibilidade, pois há preferências sintáticas e lexicais que distinguem os usos dos povos lusófonos. Mas eu ainda preciso perguntar: será que estes usos do idioma são tão ininteligíveis assim? Acho que nunca tive uma dificuldade séria para ler um texto não-brasileiro, e um bom dicionário como o brasileiro Houaiss registra usos europeus, africanos... Mais ainda, gosto das ortografias diferentes. Pode ser um fetichismo meu, mas nunca gostei de ler textos portugueses em edições abrasileiradas. E não me parece que o argumento de que “o português é o único idioma internacional e não ter uma única ortografia” é bobagem. Se passamos bem, por que mudar?
Um comentário suplementar. As regras de pontuação também parecem ter sido muitíssimo alteradas. Hoje um dos sinais distintivos do desconhecimento da “norma culta” é a separação de sujeito e predicado por vírgula. Separação que Machado de Assis fez inúmeras vezes, privilegiando o ritmo da fala, em que muitas vezes os dois estão separados por uma breve pausa. O mesmo Machado desrespeitou fragorosamente as regras hoje consagradas pela norma gramatical brasileira para a colocação dos pronomes átonos. Não se trata de dizer que dificilmente os gramáticos poderão dizer que “sabem mais português” do que Machado de Assis, porque isso criaria a falsa oposição entre literatura e norma, dando a entender que Machado usou de “licenças poéticas”. Na verdade, é mais razoável dizer que, quando um “erro” comum foi “cometido” por um dos maiores artistas da língua, é mais seguro imitá-lo do que obedecer à tia velha que quer ver todos usando o mesmo uniforme engomadinho.
E com isso encerro dizendo algo que me parece sumamente óbvio mas que não costumo ouvir. Dizem que o tal acordo ortográfico aproximaria os países lusófonos. Pois não me parece que usar as mesmas roupas criaria qualquer espécie de atração. No caso específico de Brasil e Portugal, creio que a aproximação pode acontecer simplesmente pela existência de interesses comuns que nada têm a ver com a mil vezes enfadonha questão das identidades nacionais. Por exemplo, em minha experiência vejo que brasileiros e portugueses são reunidos pelo interesse na liberdade. Ou por determinadas questões filosóficas. Não por um querer enxergar-se no exotismo do outro. É claro que um idioma comum ajuda, mas sem uma afinidade que vá além do meio de expressão não há razão para conversa. Exatamente como você e seu vizinho: ele pode falar a mesma língua e até morar a seu lado, e continuar sendo um estranho cordial. Talvez um dia você descubra que ele também percebe que Ricardo Reis é o melhor dos heterônimos e vocês possam passar algumas tardes falando de poesia. Talvez nada nunca aconteça. O certo é que não se pode forçar a amizade. Colocar acentos em determinadas palavras não interfere mininamente na questão.