Atlântico n.º3 (Junho 2005)
As primeiras páginas dos livros de Filosofia costumam animar-se com um nome curioso: Zenão de Eleia. Zenão, amigo de Parménides, concebeu o famoso paradoxo que demonstrava a impossibilidade do movimento: numa corrida, um atleta de eleição (Aquiles) nunca pode alcançar uma tartaruga que parta à sua frente. Numa lógica ad eternum, a tartaruga cava sempre uma distância entre si e o atleta. O que é aparentemente ridículo transforma-se na impossibilidade de acção para o indivíduo. Borges considerava que o ridículo paradoxal de Zenão reencarnou na obra de Kafka. O Processo assenta num mecanismo similar: Josef K. é esmagado por um processo que, por mais ridículo que pareça, está sempre à frente do seu entendimento. Ora, se Borges ainda estivesse entre nós, reconheceria na obra do escritor alemão G. W. Sebald (1944-2001) a ambiência paradoxal, circular e labiríntica de Zenão e Kafka. Aliás, parece-nos que Kafka é fundamental para a compreensão de Sebald, sobretudo ao nível do simbolismo histórico.
Austerlitz ou o homem pós-nacional
Austerlitz, uma biografia ficcionada, começa com o encontro entre o Narrador e Austerlitz (Antuérpia, anos 60). Os encontros repetem-se em Londres e em vários locais da Bélgica. Após longa separação, os dois voltam a encontrar-se (anos 90). Na primeira fase de encontros, Austerlitz é relutante em falar do seu passado; vive apenas no presente, numa espécie de concepção circular de tempo. Na segunda fase, porém, Austerlitz já se confessa preocupado com a sua memória. Acabamos por descobrir que Austerlitz é de origem judia; nasceu em Praga (terra natal de Kafka), e, ainda em criança, foi deportado para Inglaterra nos chamados Kindertransporte (meio de fuga do extermínio nazi). Os seus pais ficaram entregues à máquina de extermínio nazi. Austerlitz é, assim, construído em redor de duas obsessões: (1) uma amnésia angustiante mas voluntária; (2) a redenção que poderá advir da redescoberta do passado. Por essa razão, Sebald garante a Austerlitz uma saída minimamente redentora. No final do livro, Austerlitz parte em busca da memória do pai (em Paris), já depois de ter desenterrado o passado da mãe (deportada para um campo de extermínio).
Mas, atenção, Austerlitz não se esgota na narrativa sobre a personagem Austerlitz. Se Austerlitz (representante das vítimas do Holocausto), depois de descobrir o seu passado, alcança uma certa linearidade temporal, o narrador alemão, ao invés, permanece numa circularidade angustiante. O narrador, no final do livro, regressa ao exacto ponto de partida: Antuérpia. Este contraste entre a linearidade redentora e a circularidade angustiante é essencial para a compreensão do simbolismo de Austerlitz. Este narrador é a personificação da Alemanha pós-guerra. Mais: simboliza a Europa actual. Em Austerlitz, o passado alemão e europeu transforma-se na tartaruga de Zenão, ridiculamente vertiginosa e inatingível (as fotos soltas ao longo do texto são isso mesmo: pedaços de passado inatingíveis).
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Se Kafka é um oráculo de uma época, Sebald também o é. Josef K. simboliza o europeu esmagado pelo excesso de memória, pela ambiência nacionalista e do super-estado que rebentou na I Guerra Mundial. O narrador de Austerlitz representa o europeu de hoje, paradoxalmente esmagado pela insustentável falta de memória dos países europeus. Na Europa actual, o tempo não fluí normalmente entre o passado, o presente e o futuro. Vive-se um presente perpétuo sem ligação ao passado. E sem esse ponto de referência vital, o passado, a Europa fecha-se numa espiral ensimesmada. O vórtice desta espiral é, claro, a amnésia voluntária. Sebald foi (é) o maior cronista desta espiral.
Como lidar com o passado alemão?
Como afirmámos, Austerlitz termina com um beco sem saída para o narrador alemão. Mas, atenção, Austerlitz não é uma prescrição mas uma descrição. Sebald não desejava a manutenção da amnésia voluntária. Esta posição, implícita em Austerlitz, torna-se explícita no ensaio On the Natural History of Destruction.
O ponto de partida deste ensaio é a campanha de bombardeamentos que a força aérea aliada lançou sobre a Alemanha. Os aliados destruíram 131 cidades alemãs; 600 mil civis alemães morreram; sete milhões e meio ficaram desalojados. Sebald não pretende criticar os aliados nem procura vitimizar a Alemanha. A sua intenção é outra. O autor pretende criticar a normalidade com que os alemães encararam a destruição completa das suas cidades. Quando confrontados com a destruição que eles próprios provocaram, os alemães passaram por cima do assunto.
A história e a literatura acompanharam a amnésia colectiva. Sebald identifica três tipos de autores amnésicos: (1) amnésicos totais. Os bombardeamentos foram ignorados pela grande maioria de historiadores e escritores. (2) amnésicos parciais. Certos autores (ex: Nossack, Kasack, Mendelssohn) abordaram o passado alemão, em geral, e os bombardeamentos, em particular, mas sem uma completa consciência histórica e ética. Estes autores nunca conseguiram encontrar o tom certo para a descrição do horror. Acabaram por cair em excessos existencialistas gratuitos. (3) amnésicos fraudulentos. Grupo de autores amorais representado por Alfred Andersch. Andersch permaneceu na Alemanha durante o III Reich e, mais grave, foi apoiante discreto do regime. Depois da guerra, a auto-relegitimação constituiu a sua única preocupação. Por isso, desviou atenções do verdadeiro passado alemão.
Em resultado de tudo isto, o esquecimento tem sido a nota dominante na Alemanha. Porquê? A chave da resposta está numa certa noção de sobrevivência. Para sobreviverem enquanto povo, os alemães escolheram um caminho: amnésia voluntária e colectiva. On the Natural History of Destruction é um alerta para a perigosidade desta forma de sobrevivência através do esquecimento selectivo.
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O resto da recensão é uma pedantice insuportável.