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blogue atlântico

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05
Nov07

“A América e a democracia liberal são os novos inimigos da esquerda”

Paulo Pinto Mascarenhas
 

O britânico Nick Cohen acaba de publicar o livro “What’s Left?” [“O que resta da Esquerda?”] Em entrevista exclusiva [à Revista Atlântico de Agosto], o jornalista do Observer e do New Statesman diz que resta muito pouco dos antigos ideais e que os inimigos desta nova esquerda são a democracia liberal e os Estados Unidos.

Conversas Atlânticas


Nick Cohen em entrevista a Nuno Wahnon Martins

“A América e a democracia liberal são os novos inimigos da esquerda”

Nick Cohen sempre foi um homem de esquerda. Como lhe dizia a mãe, para se ser “bom” é necessário ser de esquerda. Contudo, os últimos anos têm demonstrado o aparecimento de uma nova esquerda. A esquerda liberal, de tendência norte-americana, que deixou para trás os valores da democracia e da solidariedade. É precisamente no seu best-seller “What’s Left?”, que brevemente será traduzido para português, que Cohen reclama a urgência na procura de novos valores para uma esquerda próxima do fascismo. Numa quarta-feira ensolarada, concedeu-nos esta entrevista num pub londrino que costuma frequentar com os seus colegas do jornal Observer.

Como nasceu o What’s left? ou O que resta da Esquerda?
Sempre fui de esquerda e continuo a ser. Contudo,  como Deus bem sabe, a esquerda praticou diversos crimes terríveis ao longo do século XX. Não obstante tudo isso, o melhor lado da história foi o facto de essa mesma esquerda ter sempre defendido determinados princípios e, sobretudo, a  sua internacionalização, nomeadamente, o da solidariedade entre os povos. Actualmente, sobretudo durante o processo de contestação contra a guerra no Iraque, acabei por não ver a aplicação daqueles princípios a favor de todos aqueles que defendiam um novo Iraque ou que tinham sofrido nas mãos de Saddam Hussein. Bem pelo contrário, o que vi foi a defesa de um ditador, considerado como o grande líder iraquiano e, em simultâneo, a acusação da existência de uma conspiração que tinha delineado a guerra. Isto não é mais do que fascismo! Foi aí que perguntei a mim mesmo o que tinha acontecido com a solidariedade da esquerda. Esta pergunta não só não teve resposta, como ainda me levou a fazer outras, nomeadamente, a do significado moderno do que é ser de esquerda. Estas foram as razões que me levaram a escolher este título e, sobretudo, a escrever o livro.

Como é que então define o que é ser de esquerda nos dias de hoje?
Hoje em dia existe na Europa a social-democracia que, em geral, defende a igualdade social e uma maior intervenção do serviço público. Mas, para além disso, o socialismo que define a esquerda, nomeadamente o socialismo defendido entre 1870 e os anos 80 do século XX, praticamente desapareceu. Hoje ninguém na Europa acredita no controlo da produção ou na nacionalização da banca. Desde os socialistas portugueses ao Labour inglês, passando pelos socialistas franceses que estiveram muito próximos dos comunistas, todos passaram a defender o Estado Previdência como a principal bandeira socialista. Por outro lado, os liberais que caracterizam a esquerda moderna não são seguidores dos mesmos ideais. É curioso ver que durante o século XX havia uma hierarquia interna no interior dos socialistas. No topo, encontrava-se o socialismo que defendia a chegada do reino dos céus. Depois vinham os liberais democráticos ao centro e, em baixo, no fundo, estavam os restantes ideais políticos: os fascistas, os sectários, os autoritários, os colonialistas, etc. Contra estes últimos foram utilizados todos os tipos de campanhas e, à medida que a existência destes ideais e regimes iam desaparecendo ou enfraquecendo, o inimigo da esquerda passou a ser a democracia liberal, em geral, e a América, em especial. Por isso mesmo, a aliança contra os inimigos da democracia liberal é sempre bem vista. Veja-se o caso do fundamentalismo islâmico que passou a ser o novo aliado da esquerda, fechando-se os olhos a tudo o que possa ser criticável, de modo a centrar os ataques na democracia liberal. Por outro lado, a falta de um ideal político torna mais fácil ser-se de esquerda. Desde ricos a egoístas, todos o podem ser. A solidariedade para com os mais fracos deixou de ser o elemento em comum passando a ser o da luta contra a América.

Deixou de haver uma responsabilidade, ou solidariedade, por todos aqueles que defendem os mesmos princípios?
Sim. Não nos preocupamos mais com os socialistas iraquianos, mas sim com o combate à democracia liberal e à América. Mas, para além disso, surgiram novos princípios desde os anos 60: o feminismo, a libertação dos homossexuais, a liberalização das drogas, etc. Estes novos princípios produziram um efeito estranho nesses mesmos liberais [Nr: Liberal, no sentido político norte-americano] já que, eles só se aplicam aos parâmetros europeus. Ou seja, não podem ser impostos noutros países sob pena de ocorrerem acusações de imperialismo ou de neocolonialismo. Tal será identificado como sendo típico de partidos de extrema-direita ou de extremistas religiosos. Isto na verdade cria um paradoxo: os homossexuais têm direitos em Inglaterra mas, por outro lado, determinadas comunidades podem defender a morte para os homossexuais sem sequer poderem ser criticadas.

Acha, como fazem alguns autores, que é possível comparar a actual situação política com o appeasement que caracterizou o período anterior à Segunda Guerra Mundial?
Até um certo ponto podemos comparar os dois períodos. O medo é uma das características comuns. Tivemos o ataque às Torres Gémeas, tivemos as bombas em Madrid e Londres - e estes têm sido o nível de causalidades com as quais a civilização ocidental tem vivido. A partir daí, o receio de que algo maior possa acontecer passou a existir nas mentes dos europeus e esta é a situação ideal para que ocorra o apaziguamento. Não que exista uma situação específica de apaziguamento, pois, na verdade, todos apaziguamos. Contudo, o medo faz com que pensemos que a culpa é nossa e que qualquer retirada possa permitir pensar que o verdadeiro culpado é o Ocidente. Por outro lado, o único paralelo com os anos trinta é o facto de a esquerda não ter combatido Hitler como hoje pretende transmitir. Os comunistas chegaram a defendê-lo em Inglaterra e muitos preferiram estar contra um governo democrático mesmo sabendo que o que existia em oposição a esse governo era pior. Em democracia, os partidos nunca defendem os outros partidos, ou seja, era muito difícil para a esquerda defender políticas de um governo de direita, pois isso significava defender o inimigo, mesmo que a solução alternativa fosse, como já disse, incomparavelmente pior. Daqui ressalvam-se duas características. Primeiro, o nosso parceiro ideológico do lado de lá passa a nosso inimigo pois tem uma posição contrária ao nosso “amigo”. Segundo, temos de ser amigos daqueles que nos querem matar. Veja que sempre que chegam ao poder, os fundamentalistas islâmicos prendem ou exilam os indivíduos liberais. Na verdade, os liberais ocidentais pretendem confrontar a América, Tony Blair e George W. Bush. Para isso, precisam dos seus “aliados” fundamentalistas.

Na configuração que apresentou existe uma característica que não entendo. As pessoas dessa esquerda defendem, em geral, os direitos dos homossexuais, mas os fundamentalistas islâmicos defendem não só o contrário como também a morte dos homossexuais. Então, porque razão que esta nova esquerda escolhe aliar-se com o fundamentalismo islâmico?
Porque a esquerda diz que não os apoia nesses princípios. O meu ponto é que o socialismo actual não acredita que está a trabalhar para a criação de um estado marxista. O que eles querem é lutar contra o status quo. Desde que os radicais não gostem da América, isso torna-se suficiente para estar ao seu lado. Por um lado, isso é a única coisa que lhes resta. O mundo actual já não se adequa ao tipo de ideologia radical do século XIX.

Imaginemos que este mundo ideal, de acordo com o fundamentalismo islâmico e com a esquerda radical de que temos vindo a falar, se concretiza. O que pensa que pode acontecer?
Isso é de todo impossível e absurdo. Isto porque prova precisamente o contrário. A esquerda radical, ao não criticar o radicalismo islâmico, está a mostrar que faliu historicamente e está, na verdade, a comprovar o fim da própria ideologia. É um sinal de exaustão e de morte política.

Durante uma Conferência na Oxford Union [Associação de Estudantes da Universidade de Oxford] foi recentemente apresentada uma moção que colocava em causa a existência dos Estados Unidos. Nessa mesma conferência ouvi alguns intervenientes, que defendiam essa moção,  promovendo, em simultâneo, a ideia da constituição de um califado na Europa. Acha que devemos deixar estes indivíduos utilizarem a liberdade de expressão nos nossos países para colocarem em causa essa mesma liberdade?
Podemos sempre ouvi-los e reconhecê-los como inimigos. O que acho extraordinário na Grã-Bretanha é, precisamente, ver esses indivíduos, nomeadamente os da Irmandade Muçulmana, a serem constantemente entrevistados na televisão por “liberais” simpáticos. Existe uma certa cegueira em não confrontar uma determinada população que detesta a democracia, que detesta as mulheres, que detesta a liberdade e os nossos valores ocidentais. Mas devemos ouvi-los para saber confrontá-los, em suma, para os podermos entender. A minha crítica vai mais para o facto de eles não aprenderem, ficarem reféns da sua comunidade e não haver ninguém para os confrontar. Dou-lhe um exemplo. Este pub em que estamos é frequentado por várias pessoas que se manifestaram contra a guerra no Iraque. Uma dessas pessoas é um jovem muçulmano que frequenta uma determinada comunidade e que aí tenta promover os valores da democracia. Há tempos disse-me que se sente cada vez mais impotente na defesa daqueles valores porque os ditos “liberais” ocidentais não permitem a defesa dos direitos dos homossexuais e das mulheres naquelas comunidades utilizando aquele argumento que enunciei e que é o da suposta imposição cultural. Neste momento, estamos a travar uma batalha de ideias e a trair todos aqueles que, verdadeiramente, necessitam do nosso apoio.

E que resposta é que podemos dar?
Para já temos de começar a argumentar que a esquerda e a direita não são dois campos opostos, sem nenhuma possibilidade de entendimento. Por outro lado, é preciso também entender que a política não existe somente nas nossas sociedades, mas  também nos outros países e culturas. É necessário compreender que existem indivíduos de extrema-direita em Inglaterra, mas que também o existem no Irão. Por exemplo. Pode e deve ser legítimo contrariá-lo, a si que é português, se eu o considerar como um membro de extrema-direita, contudo já não poderei fazer o mesmo se fosse do Zimbabué, pois seria logo conotado como racista. Isto tem de acabar. É preciso começar a travar a batalha das ideias e a defender os valores universais que são comuns a toda a humanidade.

Acha que Israel é um dos alvos desta batalha das ideias?
Claro que acho e por três razões. A primeira é que os extremistas vêem Israel como um país supra-natural e por isso o combatem. Em segundo lugar, Israel é um combate da esquerda porque esta já não tem nenhuma bandeira para abraçar. Para estes “liberais”, Israel é o único exemplo da “agressão” ocidental que ainda subsiste. Depois, e se quiser voltar à questão do appeasement, ser-se hoje em dia apaziguador é na verdade estar contra Israel e dizer que a criação daquele país foi, e é, o nosso grande “pecado”. Qualquer ser racional que observe as análises do conflito entre Israel e a Palestina percebe facilmente que a atenção que lhe é dedicada é enorme e desproporcionada face a qualquer outro conflito.

Acha que há um futuro para Israel?
Para mim, a melhor solução será sempre a existência de dois estados. Agora, sempre que Israel se retira de um território, começam logo a ser lançados rockets contra o território israelita. O problema é que a ideologia de determinados grupos como o Hamas e o Hezbollah é precisamente a mesma daqueles que realizaram o 11 de Setembro e lançaram bombas em Madrid e Londres. Enquanto os liberais ocidentais não deixarem de ser hipócritas e começarem a ver estes grupos da mesma forma que os ditos “terroristas”, o futuro para Israel e para a Palestina será sempre difícil.

Na medida em que escreve para meios de comunicação social considerados como sendo estando à esquerda do espectro político – o Observer e o New Statestman – e considerando-se de esquerda, o que lhe fez passar a ter esta opinião? Foi depois da Guerra no Iraque?

O momento principal foram os ataques às Torres Gémeas e, em seguida, o sentimento da falência da esquerda europeia que deixou de apoiar os socialistas iraquianos ou refugiados iraquianos e passou, pelo contrário, a defender o líder autoritário. Perguntei-me o que isto significava. Porque razão a BBC não entrevistava os refugiados iraquianos fugidos de Saddam? Na verdade é preciso ser oriundo da esquerda para poder perceber este fenómeno e ver o que aconteceu aos velhos valores da esquerda. Só assim finalmente entendemos que os valores comuns que os homens de esquerda partilhavam deixaram de existir.

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