“A Associação Nacional de Farmácias (ANF) está a recolher informação de receitas médicas com o objectivo de a vender à indústria farmacêutica” (in Expresso, 29 de Março de 2008, p.16).
A notícia vem no Expresso deste sábado, e desenvolve-se ao longo de toda a página, entre explicações das vantagens para a ANF e dos perigos para os médicos, defendidos por Pedro Nunes, Bastionário da Ordem dos Médicos. Mas os perigos que Pedro Nunes aponta são apenas aponta do icebergue.
Com a venda destas informações, os pacientes ficam expostos. Claro que a ANF já reiterou a ideia de que as informações seriam tratadas confidencialmente, mas quem garante que o seja? Para que realmente o fossem, os dados teriam que estar inscritos na Comissão Nacional de Protecção de Dados. E não estão.
O objectivo evidente deste negócio é saber que médicos receitam mais determinados medicamentos de forte interesse comercial para as indústrias farmacêuticas. Não se trata de descobrir quantas caixas do medicamento X foram vendidas. Isso é fácil: bastaria comparar os números da produção com os pedidos das farmácias para renovação de stocks – o que certamente já é feito pelas indústrias farmacêuticas. Trata-se sim de associar os médicos aos medicamentos que vendem. E é aí que reside o perigo, para os médicos e para os pacientes.
(1) Os laboratórios farmacêuticos fazem regularmente congressos médicos de divulgação dos seus novos produtos, muitas vezes fora de Portugal, onde cobrem todos os gastos aos médicos, da estadia às refeições, e até os passeios culturais. Não são férias pagas, mas quase. É uma mistura de marketing com promoção de conhecimento científico. É uma relação susceptível de excessos, mas até prova em contrário, não vejo aí um verdadeiro problema. Mas a partir do momento em que as farmacêuticas têm acesso à informação de receitas de médicos, tudo isto se torna mais grave – a tentação de recompensar os médicos que receitam mais de determinado medicamento é real. A selecção dos médicos convidados para os congressos passará a ser o número de receitas favoráveis, e não a sua especialidade. Permitirá às farmacêuticas medir os resultados das suas acções de formação, mas, igualmente, permitirá a essas mesmas farmacêuticas pressionar os médicos com base nos números.
A IMS (consultora que trabalha com as farmacêuticas) afirma que “não há qualquer hipótese de ser identificado o médico, nem a prescrição que ele faz. A chave que nós temos só nos permite saber qual é a especialidade e relacioná-la com a origem geográfica da receita”. Acredite quem quiser. Como responde Pedro Nunes, “caso não exista protecção dos dados pessoais, os médicos serão alvo de pressões inaceitáveis por parte dos laboratórios, que podem conduzir a um aumento da prescrição e consequentemente do consumo de medicamentos”.
(2) As consequências são evidentes: os médicos ficam pressionados para vender um produto – tipo vendedor de automóveis à comissão. Daí, um médico poderá escolher a medicação por razões outras que não a saúde do seu paciente – o principal prejudicado no processo. Sou um defensor da liberalização dos hospitais e serviços de saúde, se essa liberalização promover um melhoramento desses serviços. Mas a interferência das indústrias farmacêuticas no acto médico troca as prioridades: coloca o lucro à frente do paciente. E isso não pode acontecer.