Reler: O último líder do PSD?
O actual concurso para a liderança do PSD não é fácil de seguir. É uma história de caciques de província e velhas disputas de família, a lembrar a política oligárquica do século XIX. Os candidatos, no entanto, fazem por cumprir o papel, tentando distinguir-se uns dos outros. Santana diz-se o mais “diferente” de Sócrates. Ferreira Leite declara-se a mais “credível”. Passos Coelho mostra-se como uma “cara nova”. Mas há mesmo diferenças, credibilidade e novidade?
Peguemos, para começar, em Santana e Ferreira Leite, que se tratam a si próprios como os pólos principais da disputa. É óbvio que se detestam mutuamente. Mas para além deste ódio recíproco, têm muito mais em comum. Ambos, por exemplo, descobriram vida para além do défice. Santana preocupa-se sobretudo com o “crescimento”, e Ferreira Leite com as “questões sociais”. Alguém lhes ensinou, como já tinha ensinado a Menezes, que Sócrates deve ser ultrapassado “pela esquerda”. Ninguém, por isso, os ouve falar demasiado de “reformas”, como a da administração pública. Significativamente, tanto Santana como Ferreira Leite reproduzem assim o “silêncio” e o “esquerdismo” eleitoralistas que os comentadores detectaram há uns tempos no actual governo. O que os distingue então de Sócrates? Em entrevista à SIC, Ferreira Leite discorreu sobre questões de estilo. Sócrates não “dialoga” e causa “mal estar”. Ela vai “dialogar” e reconciliar toda a gente. Onde é que já ouvimos isto? Exactamente: em 1994-1995, quando Guterres fazia oposição a Cavaco Silva. Com Sócrates, o PS arranjou um “Cavaco”; o PSD ameaça agora arranjar um “Guterres".
Percebe-se que Santana e Ferreira Leite apostam quase tudo na revisão do crescimento económico para baixo e da inflação para cima. Mas se a economia não arrancar, vai o país devolver o seu destino aos mesmos que, em três anos, entre 2002 e 2005, não conseguiram equilibrar o orçamento, não fizeram as “reformas”, e acabaram pateticamente à mercê de Sampaio? Os mesmos a quem já puniu nas eleições europeias de 2004 e nas legislativas de 2005?
De resto, os dois candidatos exibem o tradicional obscurantismo ideológico do PSD, expressando-se numa língua estranha, em que as palavras não têm os significados correntes e as coisas não têm os nomes habituais. Na SIC, Ferreira Leite definiu-se como “social-democrata”. Ao Correio da Manhã, explicou que “não sou com certeza liberal, também não sou populista”. Com certeza? É que, nessa mesma ocasião, eis como descreveu a linha geral do partido: “O PSD defende um Estado pequeno, mais reduzido, que apenas tem como função incentivar e especialmente criar as condições para que a iniciativa privada funcione, se desenvolva e se liberte, que dê espaço à sociedade civil para progredir, e que incida a sua acção para satisfazer necessidades dos menos favorecidos”. Onde é que, no mundo, se chama a isto “social democracia”? A classe dirigente do PSD não parece compreender que esta relutância para se definir claramente, nos termos do debate político de hoje, a faz parecer uma oligarquia bizantina, demasiado remota ou manhosa.
A primeira consequência de Santana Lopes e de Ferreira Leite foi a inesperada “obamização” de Passos Coelho. Sim, Passos vem do PSD, com os decorrentes caciques, limitações ideológicas (ainda não descobriu, aos quarenta e tal anos, se é de direita ou de esquerda) e tendências tecnocráticas (mal lhe falam de um problema, começa logo a debitar “medidas”). Mas fala de “reformas” e, pelo menos, chama “liberalismo” ao “liberalismo”. É provável que tenha ainda outras qualidades. Acima de todas, porém, tem neste momento esta: não é Santana nem Ferreira Leite. Ao contrário deles, não deixará Sócrates reduzir o debate às contas do passado. E sobretudo, não parece tão afectado como os outros pelos rancores e incompatibilidades que neste momento separam a classe dirigente do PSD. Isso quer dizer que poderá dirigir o partido com menos de 50 % dos votos: Santana e Ferreira Leite, com um resultado inferior, terão logo de iniciar a contagem decrescente para a “guerrilha interna” ou mesmo para a cisão. Talvez Passos Coelho seja o único dos candidatos em condições de não ser o último líder do PSD. Ou talvez já ninguém possa evitar essa sorte.
O PSD importa ao país na medida em que for uma alternativa ao presente governo. Que lhe acontecerá, se continuar incapaz para a função? Em 2009, por coincidências de calendário eleitoral, um PSD irrelevante arrisca-se a ser castigado não apenas na assembleia da república, mas onde mais dói: nas autarquias. Basta correr as listas de apoiantes dos actuais candidatos à presidência do partido para constatar que o PSD é hoje pouco mais do que um grémio de presidentes de câmara e juntas de freguesia. São eles as célebres “bases”. Para onde irão, sem a pastagem de municípios e freguesias? E para onde irá o PSD, sem essas “bases”?
[Rui Ramos]
-
Crónica do Público de 21 de Maio
Editada para o Blogue Atlântico